Quem decide o que é estudado?

Claramente, essa situação é insatisfatória. Então, como isso aconteceu? Um dos motivos é que o que é estudado pelos pesquisadores é distorcido por fatores externos. A indústria farmacêutica, por exemplo, faz pesquisa por causa da sua necessidade primária, que é assumir a sua responsabilidade prioritária perante os acionistas de produzir lucro. A sua responsabilidade para com os pacientes e os clínicos vem em segundo lugar. As indústrias são conduzidas por grandes mercados, como o das mulheres que não sabem se devem usar a terapia de reposição hormonal, ou o das pessoas que estão deprimidas, ansiosas, infelizes ou com dores. Contudo, só raramente, nas décadas recentes, essa abordagem comercial levou a novos tratamentos importantes, até mesmo para transtornos do ‘mercado de massa’. Em vez disso, dentro dos grupos de medicamentos, a indústria produziu normalmente vários compostos muito semelhantes, os chamados medicamentos similares. Isso lembra os dias em que o único pão disponível em supermercados era a inúmera variedade de pão de forma branco fatiado. Então não é surpreendente que a indústria farmacêutica gaste mais em marketing do que em pesquisas.

No entanto, como a indústria convence os prescritores a usar esses novos produtos em vez das alternativas existentes e menos custosas? Uma estratégia comum é comissionar vários projetos de pesquisa pequenos, demonstrando que os novos medicamentos são melhores do que não administrar nada e não realizar pesquisa alguma para descobrir se os novos tratamentos são melhores do que os existentes. Lamentavelmente, a indústria tem pouca dificuldade em encontrar médicos
que queiram registrar seus pacientes nesse empreendimento inútil. E os mesmos médicos acabam com frequência prescrevendo
os produtos estudados dessa forma. Além disso, as autoridades que licenciam os medicamentos pioram muitas vezes o problema insistindo que os novos medicamentos devem ser comparados ao placebo, e não aos tratamentos eficazes já existentes.

Outra estratégia é quando há um ghost writer. Isso é o que acontece quando um escritor profissional redige texto que é oficialmente creditado a outra pessoa. A maior parte das pessoas já viu “autobiografias de celebridades” que foram claramente redigidas por um ghost writer. Contudo, o material redigido por um ghost writer também aparece em publicações acadêmicas e com consequências potencialmente preocupantes. Às vezes, a indústria farmacêutica contrata empresas de comunicação para preparar artigos que, previsivelmente, moldam o produto da indústria de modo favorável.

Depois de o artigo estar pronto, é recrutado um acadêmico (por um “honorário”) para ser o autor do artigo. Em seguida, o artigo
é submetido para publicação. Os comentários para esse propósito são especialmente populares. A indústria também tem como
alvo os suplementos de revistas científicas, publicações vinculadas separadamente que, carregando o nome da revista principal, são muitas vezes patrocinadas pela indústria e tendem a não ser revisadas rigorosamente pelos colegas como acontece na revista principal. As mensagens de marketing criadas e promovidas dessa forma levaram à promoção exagerada dos benefícios dos produtos e à minimização dos seus danos (ver Capítulo 8).

As empresas de medicamentos também colocam anúncios nas revistas médicas para promover os seus produtos. Normalmente, esses anúncios incluem referências a fontes de evidência para dar suporte às afirmações. Elas podem ser convincentes à primeira vista, mas surge uma imagem diferente quando a evidência é analisada independentemente. Mesmo quando a evidência é proveniente de estudos randomizados, as pessoas que leem os anúncios podem bem acreditar que se trata de uma avaliação confiável. Nem tudo é o que parece. Quando pesquisadores analisaram os anúncios das revistas médicas mais importantes para ver se a evidência dos estudos randomizados fazia sentido, descobriram que somente 17% dos estudos referenciados eram de boa qualidade, dando suporte à afirmação feita para o medicamento em questão, e não havia sido patrocinado pela própria indústria do medicamento. Sabe-se que as pesquisas patrocinadas dessa forma têm maiores probabilidades de encontrar um resultado favorável para o produto da empresa. Comentários em revistas médicas prestigiadas como a The Lancet chamaram a atenção para os incentivos perversos que atualmente motivam algumas das pessoas envolvidas na pesquisa médica e para as relações cada vez mais dúbias entre as universidades e a indústria. Um antigo editor da New Eng J Med perguntou diretamente “A medicina acadêmica está à venda?”

As prioridades comerciais não são as únicas influências perversas sobre os padrões da pesquisa biomédica a ignorar os interesses dos pacientes. Muitas pessoas nas universidades e nas organizações de financiamento de pesquisas acreditam que essas  melhorias na saúde muito provavelmente derivam das tentativas para desvendar os mecanismos básicos das doenças. Então, eles fazem pesquisa em laboratórios e com animais. Embora essa pesquisa básica seja indubitavelmente necessária, existe pouca evidência valiosa para ajudar a sua parte de financiamento a ser substancialmente maior do que pesquisas envolvendo pacientes. Contudo, a consequência foi a expansão maciça da pesquisa de laboratório, que não foi adequadamente avaliada
para verificar a sua relevância para os pacientes. Uma das razões para essa distorção é a publicidade ao redor dos avanços clínicos previstos que a pesquisa básica, especialmente a genética, pode oferecer (ver Capítulo 4 para visualizar testes genéticos).

No entanto, como Sir David Weatherall, médico distinto e pesquisador  genético, observou em 2011: “Muitos dos nossos maiores assassinos refletem a ação de um grande número de genes com efeitos pequenos, combinada com um contributo fundamental do ambiente físico e social. Esse trabalho está produzindo informação valiosa sobre os processos de algumas doenças e enfatiza também a individualidade e a variabilidade dos mecanismos subjacentes das doenças. Claramente, ainda falta muito tempo para a era da medicina personalizada baseada na nossa constituição genética”. Atualmente, mais de 50 anos depois da descoberta da estrutura do DNA, a cacofonia das afirmações sobre os benefícios iniciais da “revolução genética” na saúde parece estar diminuindo. A realidade está começando a instalar-se.

Um cientista, falando sobre o potencial da genética para resultar no desenvolvimento de novos medicamentos, comentou: “Entramos numa era de realismo… os aspectos genéticos têm de ser observados em associação com outros fatores,
incluindo o ambiente e o uso clínico dos medicamentos. Só porque um medicamento não funciona em um paciente não indica que a variação genética como resposta seja a causa”. Um editorial na revista científica Nature, em um número celebrando o 10o aniversário da sequência do genoma humano, registrou: “… houve algum progresso, em forma de medicamentos direcionados para o combate de defeitos genéticos específicos identificados em alguns tipos de câncer, por exemplo, e em alguns transtornos raros hereditários. No entanto, a complexidade da biologia pós-genoma frustrou as esperanças iniciais de que gotejos dessas terapias se tornassem uma inundação.

Simplesmente não há maneira de contornar de forma responsável a necessidade de pesquisa bem concebida em pacientes, para testar as teorias terapêuticas derivadas da pesquisa básica. E, muito frequentemente, essas teorias nunca são investigadas para verificar se têm alguma relevância para os pacientes. Mais de duas décadas depois de os pesquisadores terem identificado o defeito genético que provoca fibrose cística, pacientes com essa condição ainda estão fazendo uma pergunta fundamental:  quando essa descoberta vai render frutos para a saúde?

Mesmo quando a pesquisa pode parecer relevante para os pacientes, os pesquisadores muitas vezes parecem ignorar suas preocupações quando concebem os estudos. Em uma ilustração notável, foi pedido a médicos que tratavam câncer de pulmão para se colocarem na posição de pacientes e para considerarem se consentiriam participar de cada um dos seis experimentos para os quais eles poderiam, como pacientes, ser elegíveis para participar. Entre 36 e 89% disseram que não.

De modo semelhante, nos estudos clínicos de psoríase – condição dermatológica crônica e incapacitante que afeta cerca de 125 milhões de pessoas em todo o mundo – os interesses dos pacientes têm sido mal representados. Por exemplo, a Associação de Psoríase no Reino Unido descobriu que os pesquisadores persistiam no uso, em muitos estudos, de um sistema de pontuação amplamente desacreditado para avaliar os efeitos de vários tratamentos. Entre as suas deficiências, o sistema de pontuação concentrava-se em medidas como a área total da pele afetada e a espessura das lesões, enquanto os pacientes, de modo nada surpreendente, estão mais preocupados com as lesões no rosto, nas palmas das mãos, nas solas dos pés e nos genitais.

  • Ichalmers

    Italicize The Lancet, the New England Journal of Medicine, and Nature.

    This is one of the longest chunks of text in the book, but I can’t see any way round that.

  • Anonymous

    Done