Lições do rastreamento do neuroblastoma
A experiência com o rastreamento do neuroblastoma, um câncer raro que ocorre principalmente em crianças, é educacional de várias formas. Esse tumor afeta as células nervosas em várias partes do corpo.
As taxas de sobrevida das crianças afetadas dependem de fatores como qual a parte do corpo afetada, quanto o tumor se espalhou até o momento do diagnóstico e a idade da criança. A taxa de sobrevivência geral de 5 anos das crianças entre 1 e 4 anos de idade no diagnóstico é de cerca de 55%. Uma característica curiosa do neuroblastoma é que se trata de um dos poucos tipos de câncer que por vezes desaparecem completamente sem tratamento – fenômeno chamado de regressão espontânea. O neuroblastoma era um alvo tentador do rastreamento por quatro razões: (1) sabe-se que crianças diagnosticadas antes do primeiro ano de vida têm mais esperança média de vida do que as diagnosticadas mais tarde; (2) crianças com doença avançada têm piores desfechos do que crianças na fase inicial da doença; (3) existe um teste de rastreamento simples e barato que pode ser realizado obtendo fraldas molhadas e medindo substâncias na urina; (4) o teste detecta nove em dez crianças com neuroblastoma. O rastreamento em massa de bebês para verificar a presença de neuroblastoma aos 6 meses de idade foi introduzido pela primeira vez no Japão em 1985, sem o benefício da evidência livre de viés (imparcial) dos estudos clínicos. Durante os primeiros 3 anos de rastreamento por toda a nação, mais de 337 bebês foram diagnosticados, 97% dos quais estavam vivos em 1990 no seguimento do tratamento. No entanto, 20 anos mais tarde, não havia evidência de que o rastreamento reduzia o número de crianças que morriam por causa desse câncer. Como isso é possível? Quando a evidência foi examinada sobre qual rastreamento tinha sido introduzido e promovido no Japão, chegou-se à conclusão de que havia falhas graves – mas também uma explicação pronta. O impressionante dígito de sobrevivência de 97% ilustra o efeito de algo conhecido tecnicamente como “viés de duração” – indicando que o rastreamento funciona melhor na detecção de condições que se desenvolvem lentamente (tumores de evolução lenta, neste caso). Em contrapartida, os tumores de evolução rápida têm menos probabilidade de serem detectados no rastreamento, mas conduzem a sinais clínicos no bebê, por exemplo, um inchaço no abdome, que fará com que a criança seja levada ao médico rapidamente. Tumores de evolução rápida são potencialmente mais graves do que os que evoluem lentamente. Os neuroblastomas de evolução lenta têm normalmente bom resultado, incluindo a regressão espontânea.
Então, os 337 casos diagnosticados por meio do rastreamento teriam tido, na sua maioria, bom resultado de qualquer forma e não teriam incluído bebês com os piores resultados potenciais. E, claro, o rastreamento teria detectado alguns neuroblastomas que teriam desaparecido naturalmente. Sem o rastreamento, ninguém saberia que esses tumores existiam. Com o rastreamento, esse sobrediagnóstico transformou os bebês afetados em pacientes, que depois foram expostos a danos desnecessários associados ao tratamento.
Além disso, os resultados encorajadores de estudos pequenos que tinham levado ao rastreamento por todo o Japão haviam, inicialmente, sido analisados verificando-se o tempo de vida desde a data do diagnóstico do neuroblastoma, e não o tempo de vida desde o nascimento. Isso é importante porque diagnosticar uma doença precocemente não faz com que os pacientes vivam mais tempo automaticamente. Eles meramente vivem por um período mais longo com o “rótulo” da doença. Dito de outra forma, a sobrevida parece mais longa porque o “reló- gio da doença” começa a contar mais cedo. Esse é um exemplo do que é conhecido como “viés de tempo de execução” e que pode ser superado por meio da análise dos resultados por data de nascimento, em vez de pela idade no momento do diagnóstico.
Em contrapartida, quando foi obtida evidência livre de viés a partir de ensaios clínicos conduzidos no Canadá e na Alemanha, envolvendo cerca de três milhões de crianças no total, os pesquisadores não conseguiram detectar qualquer benefício no rastreamento, mas havia danos óbvios. Eles incluíam cirurgia injustificada e quimioterapia, que podem ter efeitos indesejáveis graves. À luz dessa evidência, o rastreamento dos bebês para verificar a presença de neuroblastoma no Japão foi interrompido em 2004.
Enquanto isso, os bebês do estado de Nova Gales do Sul, na Austrália, foram poupados do rastreamento do neuroblastoma, que tinha sido planejado na década de 1980 após os encorajantes estudos iniciais japoneses. No entanto, os resultados japoneses, como mencionado anteriormente, mostraram uma taxa de sobrevivência mais longa desde a data do diagnóstico dos bebês rastreados. A taxa de sobrevivência desde a data de nascimento não havia sido analisada. Então, um especialista australiano entrou em cena e voltou a analisar os resultados japoneses desde as datas de nascimento dos bebês, em vez de desde as datas do diagnóstico. Essa análise não mostrou qualquer diferença nas taxas de sobrevivência dos bebês rastreados e não rastreados. Isso convenceu as autoridades de Nova Gales do Sul a abandonar o seu programa de rastreamento, poupando os bebês de danos desnecessá- rios e o serviço de saúde de despesas fúteis.
Comparando riscos e benefícios
Comparando riscos e benefícios Existem vários exemplos de rastreamento benéfico. Talvez o mais amplamente usado em adultos seja a verificação de fatores de risco relativos a doença cardíaca e AVC, realizada de modo rotineiro nos postos de saúde. Existe evidência crível de que pressão alta, níveis altos de colesterol no sangue e consumo de tabaco aumentam o risco dessas doenças e que identificação, aconselhamento e tratamento desses fatores podem prevenir ataques cardíacos e AVC.